terça-feira, 21 de junho de 2011

Sobre os amantes da maconha

“Com medo, peguei o revólver do meu marido e disparei. Meu filho morreu ali. Vivo uma dor que não tem fim”

Um daqueles textos longos e necessários. Começo transcrevendo dois depoimentos. Volto em seguida.

“Tobias, meu filho, era um rapaz muito bonito. Chegou a trabalhar como modelo fotográfico. Aos 21 anos, caiu no crack. Voltava para casa só quando precisava de dinheiro para a droga. Roubava casacos, sapatos, objetos de decoração. Trocava tudo por pedra. Eu mesma ia até o traficante para pegar tudo de volta. Ele ficou violento, passou a me agredir. Dois anos atrás, com medo, peguei um revólver do meu marido e disparei. Tobias morreu ali. Fui presa. Acabei sendo inocentada por ter agido em legítima defesa. Perdi meu único filho. Vivo uma dor que não tem fim.”
Flávia Costa Hahn, 62 anos, aposentada, Porto Alegre

“Em pleno Dia das Mães, no ano passado, recebi a pior notícia da minha vida. Meu filho, Nevyson, havia sido assassinado a tiros. Ele tinha 20 anos e usava crack fazia um ano. Roubava dentro e fora de casa para manter o vício. Certa vez, por causa do crack, passou quatro dias sem comer nem dormir. Cheguei a acorrentá-lo ao pé da cama para impedir que ele se drogasse. O problema é que, onde eu moro, ladrãozinho ‘noiado’ não tem vez. Um grupo de extermínio o matou. No dia em que eu não consegui mantê-lo acorrentado, disse que lavava minhas mãos. Foi a última vez que o vi.
Tânia Maria da Silva, 47 anos, faxineira, Recife

Voltei
A VEJA desta semana traz uma reportagem de capa devastadora, assinada por Ricardo Westin. Repórteres da revista ouviram duas dezenas de país e mães de viciados e constataram: a droga destrói o doente, sim, mas também deixa devastadas as famílias. Há, estima-se, ao menos um milhão de viciados em crack no país, agora ameaçados por uma droga ainda mais perigosa, porque mais barata e letal: o óxi. A edição desta semana da revista dedicou seu editorial ao tema. Ele precisa ser emoldurado e colado à consciência de cada um de nós, especialmente porque marchas da maconha e arroubos condoreiros do Supremo estão submetendo o debate a duas torções perversas: de um lado, a puerilidade irresponsável de quem pretende que a droga seja apenas um detalhe num estilo de vida supostamente libertário; de outro, uma certa gravidade retórica que pretende emprestar ao tema a grandeza de um direito civil. Leiam o texto, que reproduzo como imagem. Volto em seguida.

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Comento
Raramente as luzes serviram com tanta diligência e requinte retórico às trevas como na sessão de terça-feira do Supremo, que autorizou não o debate sobre a eventual descriminação das drogas — porque este pode ser feito a qualquer hora e em qualquer lugar —, mas, na prática, a apologia do consumo, o que é caracterizado no Código Penal brasileiro como crime. O tribunal não autorizou apenas que se fale sobre as substâncias ilegais, o que não é proibido, mas a incitação ao consumo. E, por suposto, só se incita aquele que não partilha do hábito. O “target” das marchas não são os maconheiros, mas os não-maconheiros. Ainda de acordo com o óbvio: o alvo dos marchadeiros também não são os adultos, que já fizeram suas escolhas, mas aqueles que estão um tanto incertos sobre muita coisa: os jovens.

O ministro Luiz Fux ainda tentou coibir a presença de menores a essas manifestações, argüindo o Estatuto do Menor e do Adolescente e o Artigo 227 da Constituição, a saber;
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
De pronto, Fux foi contestado por Carmen Lúcia e Celso de Mello — e os demais foram na mesma linha: segundo os ministros, cabe às famílias limitar a presença de crianças e adolescentes a esses atos, não ao estado. Quando menores são flagrados se prostituindo ou em trabalho inadequado, o estado pode ou não pode fazer valer a sua autoridade? Que diabo de argumento era aquele? Fux, infelizmente, preferiu não polemizar.

“Ah, Reinaldo, acontece que o tribunal decidiu que as marchas não são apologia, mas manifestação da liberdade de expressão”. É mesmo! Eu havia me esquecido. Menos do que desrespeitar o Código Penal, o que o Supremo fez foi mudar o sentido da palavra “apologia”. Mais do que uma pequena revolução legal, nós passamos por uma revolução semântica.

O crack revela o fundo falso da tese
Leiam a reportagem de VEJA. A praga do crack revela o fundo falso das teses da descriminação e da legalização das drogas. Mesmo com todas as interdições legais, morais, sociais, médicas, temos hoje um exército de 1 milhão de zumbis vagando pelas cidades. Imaginem as conseqüências de uma ampla exposição dos jovens às substâncias hoje proibidas.

Destaque-se que há um argumento absolutamente furado a tentar dar algum alcance teórico à tese da descriminação da maconha: a repressão teria falhado porque nem inibe o tráfico nem impede que milhões de pessoas se viciem. Bem, ninguém sabe quantos seriam os viciados se não houvesse a repressão; logo, estamos diante de uma ilação que não tem como ser comprovada. O que se sabe, e eis uma pista fornecida pela lógica, é que existem muito menos viciados em drogas ilegais do que nas drogas legais. O que isso quer dizer? Que a ilegalidade inibe o consumo. Convenham: é uma conclusão inescapável a qualquer bípede que não tenha o corpo coberto de pêlos ou de penas. Descriminar amplamente o consumo e considerar crime apenas a venda é o sonho dourado dos narcotraficantes; para eles, significa aumento da demanda.

Mais: se o objetivo é evidenciar a inutilidade da cara máquina repressiva, então não faz sentido falar em descriminação (ou legalização) só da maconha; é evidente que ela tem de se estender a todas as drogas, ou o narcotráfico manterá a sua máquina criminosa para vender as demais substâncias, das quais a maconha é porta de entrada, ainda que os maconheiros jurem que não — a experiência ambulatorial dos profissionais que lidam com viciados atesta o que escrevo.

Marchar a favor da maconha é coisa para covardes, especialmente agora que os policiais têm de se descuidar de bandido para proteger a geração sucrilho, que se sente oprimida por não poder fazer praça do seu vício. Corajoso mesmo seria marchar a favor do crack, do óxi, da cocaína e da heroína. Ocorre que, dos nóias que perambulam pelas ruas, os maconheiros guardam distância. A propósito: em vez de interditar o direito constitucional de ir e vir na Paulista, avenida que, ademais, dá acesso a vários hospitais, por que os maconheiros não vão se concentrar na cracolândia, ou não reconhecem esses libertáros naquelas pobres almas seus parceiros, seus irmãos?

Encerro
O poeta Horácio recomendava, em sua Ars Poetica, que o poeta não começasse o seu poema lembrando o nascimento das musas, que definisse logo um objeto. O ministro Ricardo Lewandowski não deve ter lido Horácio. No julgamento, desandou a fazer indagações de princípio, evocando as musas: “Mas o que é droga? Café é droga? Tabaco é droga?”

Lewandowski quer saber o que é droga? Leia a reportagem da VEJA, ministro! Droga é isto doutor Lewandowski:
“Ele ficou violento, passou a me agredir. Dois anos atrás, com medo, peguei um revólver do meu marido e disparei. Tobias morreu ali. Fui presa. Acabei sendo inocentada por ter agido em legítima defesa. Perdi meu único filho. Vivo uma dor que não tem fim.”

O resto é tertúlia acadêmica. Desculpo-me: subacadêmica!

Por Reinaldo Azevedo